sábado, 29 de maio de 2010

Crônica: Os estudantes e as Viagens de Vapor


VIAGENS DE VAPOR

Vapor era como a gente chamava os navios “gaiola” que navegaram pelo Rio São Francisco, até os anos 1960, tendo como combustível a lenha retirada das árvores nativas da caatinga que vicejavam à margem do rio. Era o meio de transporte mais usado pela população de Xique-Xique devido ao baixo preço da passagem. A outra alternativa de viagem era o uso do avião cuja empresa aérea, Real Aerovias substituída mais tarde pela Varig, fazia escala semanal na cidade numa linha aérea que servia à comunidades ribeirinhas, ligando Belo Horizonte (MG) a Salvador (BA). Mas, essa opção era para as pessoas financeiramente mais abastadas o que eram poucas em Xique-Xique nos anos 1950. O povo e principalmente os estudantes utilizavam o VAPOR nas viagens de ida e volta dos colégios de Salvador por ocasião do início das aulas ou das férias letivas.
Com a construção da rodovia estadual de Xique-Xique a Salvador e após a instalação de uma linha regular de ônibus, as viagens de vapor foram rareando até que deixaram de ser feitas pelos estudantes, devido a impraticabilidade, a demora e a complicação para embarque nas épocas em que o rio estava seco e o vapor não entrava na cidade ficando ancorado “lá fora” no porto do Jenipapo, um local situado no outro lado da Ilha do Gado Bravo que fica em frente a Xique-Xique.
Antes da existência dos ônibus, as nossas viagens de Salvador a Xiquexique, por ocasião das férias letivas, eram bastante complicadas para quem não podia viajar de avião. A solução era pegar um trem de Salvador a Juazeiro (BA) que levava dois dias rodando sobre os trilhos e, ao chegar naquela cidade do interior baiano ter a sorte de contar com um vapor ancorado no porto prestes a zarpar rumo a Xiquexique numa viagem que levava de 3 a 4 dias sem o conforto de um espaço para dormir, pois as acomodações, conhecidas como camarotes, eram em pequeno número, limitavam-se a no máximo 12 unidades nos grandes vapores, o que não atendia nem a um décimo dos passageiros. Para suprir essa deficiência a tripulação distribuía redes ou colchonetes que eram armadas e espalhados pelas áreas comuns do vapor a partir das 22 horas, quando todas as luzes se apagavam e os passageiros que viajavam de camarotes já estavam acomodados nos seus aposentos.
Caso não existisse vapor ancorado no porto de Juazeiro (BA), a solução era procurar uma barca a motor que estivesse de saída para Xiquexique ou então, tratar de matar o tempo naquela cidade, até que aparecesse um transporte que subisse o rio. Mesmo estando ansiosos para chegar, gostávamos de passar um ou dois dias em Juazeiro (BA) que já naquele tempo se nos afigurava agradável, principalmente pelo fato de podermos contar com os passeios a Petrolina (PE) que fica na outra margem do rio.
Os grandes vapores, como o da foto, preferidos pelos passageiros, possuíam 3 níveis ou 3 pavimentos. O primeiro logo acima do nível da água era onde se encontravam as máquinas, a caldeira, o depósito de lenha e uma pequena área onde à noite era destinada para armar as redes dos passageiros que ali viajavam. Esse local, era conhecido como a 2ª classe do vapor. Os passageiros da 2ª classe eram pessoas de baixa renda que geralmente estavam se dirigindo para Pirapora (MG) onde tomariam um trem com destino a São Paulo. Essas pessoas que representavam o êxodo nordestino não tinham acesso ao andar superior denominado de 1ª classe. Ali, na primeira classe, existia um salão com vista frontal para o rio e um salão nos fundos onde funcionava o restaurante. Entre essas duas áreas situavam-se os camarotes. Acima da 1ª classe ficavam as acomodações do comandante e demais oficiais tripulantes do vapor, bem como a cabine de comando e o característico apito. Para os passageiros da 1ª classe a viagem era relativamente agradável e confortável. As refeições sempre variadas, eram servidas com toda o esmero, por garçons, num pequeno salão onde haviam mesas e cadeiras dispostas a exemplo de restaurante.
Tanto os vapores quanto as barcas a motor faziam o mesmo itinerário quando saíam do porto de Juazeiro (BA), rio acima, com destino a Pirapora (MG). A primeira grande emoção era a passagem pelas corredeiras da cachoeira de Sobradinho. Foi nesse ponto das corredeiras que o Rio São Francisco foi barrado dando origem ao grande lago de sobradinho, um dos maiores lagos do mundo com um comprimento médio de 400 km e largura média de 20 km, cuja barragem fica a uma distância de 50 km de Juazeiro (BA). Essa travessia das corredeiras além de muito exigir dos motores das embarcações, também servia para testar a destreza do piloto, conhecido entre os barranqueiros como “prático”.
Após as corredeiras de Sobradinho, a viagem era relativamente tranqüila e vagarosa com o vapor ancorando em todas as cidades ribeirinhas abundantes ao longo do Rio para pegar passageiros, mercadorias ou a lenha para combustível. A primeira era Casa Nova (BA), atualmente submersa e substituída por outra cidade construída na margem do Lago de Sobradinho e com o mesmo nome. A velha Casa Nova foi o berço de tradicionais famílias baianas, destacando-se a família Viana tendo como representante máximo o Dr. Luiz Viana que chegou a ser governador da Bahia.
Saindo de Casa Nova, o próximo destino era Sento-Sé (BA), que também foi submersa e substituída por outra cidade com o mesmo nome. Sento Sé é a terra natal dos ascendentes das famílias Moraes e Afonso, radicadas em Xique-Xique desde o início do sec. XX e ainda com muitos representantes ali residindo. A próxima cidade era Remanso (BA), que a exemplo das anteriores, atualmente se encontra no fundo do rio tendo os moradores se transferido para outra construída e com a mesma denominação. A última cidade, antes de Xique-Xique, era Pilão Arcado (BA), terra de gente valente e muitos cooneis, que também desapareceu sob as águas do Lago Sobradinho..
Com a chegada em Pilão Arcado já tínhamos percorrido 3/4 da viagem e já sentíamos o cheiro de Xiquexique que estava logo ali a mais ou menos 110 km de água. Neste caso, ir de Juazeiro para Xique-Xique, subindo o Rio São Francisco, de barca ou de vapor, se gastava em torno de 4 dias e assim, estaríamos chegando em casa, depois de 6 dias de viagem, contados a partir de quando havíamos tomado o trem em Salvador e desde que tivéssemos a sorte de encontrar um vapor esperando por a gente no porto de Juazeiro (BA).
Não obstante a maratona de 6 dias, essa viagem da Salvador a Xique-Xique, por ocasião das férias, era ansiosamente esperada e feita com muita alegria e disposição, vez que, dentro do possível, todos os estudantes de Xique-Xique viajavam juntos no mesmo trem e no mesmo vapor.

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