domingo, 27 de junho de 2010

Crônica: As Barcas à Vela e os "Remeiros" do Rio São Francisco



AS BARCAS À VELA E OS “REMEIROS”
Juarez M. Chaves
(Primeira Parte)

As barcas à vela do Rio São Francisco! Tenho uma ligação ancestral com esse meio de transporte fluvial até hoje utilizado no Velho Chico. O meu avô materno, José Custódio Ribeiro de Moraes, Seu Zeca, era proprietário de 3 barcas à vela que viajavam de Xiquexique para Juazeiro (BA), para Januária (MG) e uma delas fazia o percurso até a cidade de Barreiras (BA) via Rio Grande e Rio Corrente, afluentes da margem esquerda do São Francisco. Foi numa dessas viagens que um tio meu, Antônio Custódio de Moraes, comandante da barca que seguia até Barreiras (BA), encontrou a jovem Alice com quem se casou, abandonado totalmente a vida de barqueiro.
No decorrer dos anos 1950 eu gostava de ficar na beira do rio, sentado no cais, em Xique-Xique, admirando as barcas a vela, portando nas proas as mais variadas carrancas, atravessarem o Lago Ipueira e encostar no porto da cidade. Quando as barcas vinham com carregamento de cachaça e de rapadura a gente logo sabia que estavam chegando de Minas, principalmente da cidade de Januária (MG). Ao desatracarem de Xique-Xique com destino a Juazeiro (BA), descarregavam parte da carga de cachaça e rapadura e substituía por um carregamento de grãos, com predominância de mamona com destino às indústrias em Petrolina (PE).
Quando o vento estava forte e isso acontecia nos meses de julho a setembro, as barcas, garbosamente, abriam as suas velas e singravam, esbeltas, as águas do Lago Ipueira. Era um cenário muito bonito e eu ficava horas e horas, sentado no cais, admirando a habilidade daqueles homens rudes manobrando com destreza aqueles grandes e pesados barcos que obedeciam as ordens emanadas dos lemes e das velas, com a maior docilidade.
Lembro-me muito bem de uma velha barca portando uma enorme carranca que durante muitos anos ficou estacionada fora d'água, na Ponta Ilha e permaneceu naquele local até ser totalmente destruída pelo tempo. Essa barca era de propriedade do Sr. Zé Vermelho, barqueiro famoso. Não sei a causa do abandono daquela embarcação.
Ser barqueiro, dono de barca, em Xique-Xique era sinônimo de estar bem de vida. As barcas do São Francisco, inicialmente a vela e depois a motor, estavam para o rio assim como os grandes caminhões estão hoje para as rodovias. Além da importância para os transportes só podiam ser adquiridas por pessoas que disponham de capital. Em Xique-Xique conheci apenas dois barqueiros, quantidade ínfima se comparada às centenas de barcas que costumavam estar ancoradas no porto.
Dentre as inúmeras tradições do Rio São Francisco, os personagens que naquela época mais se destacavam eram o “barqueiro”, nome aplicado ao proprietário da barca e o “vareiro”, também conhecido como “remeiro”, importantes no intercâmbio entre as povoações ribeirinhas.
Com a chegada das barcas movidas a óelo diesel a profissão dos “remeiros”, gradualmente desapareceu. Mas eles, conseguiram se manter navegando exercendo outras atividades nas diversas modalidades de embarcações, sempre mostrando a mesma capacidade de resistir ao grande esforço físico exigido para essa atividade. Com o desaparecimento dos “remeiros”, também desapareceu as cantigas entoadas melancolicamente por eles, durante as subidas e descidas no rio. Algumas dessas cantigas até hoje permanecem na memória dos barranqueiros, como uma delas a que descreve as cidades das margens do São Francisco e que assim diz: Juazeiro da lordeza / Petrolina dos missais Santana dos cascais / Casa Nova da carestia / Sento Sé da nobreza / Remanso da valentia, Xique Xique dos bundões, Icatu cachaça podre / Barra só dá ladrão (neste último caso, aludindo com sarcasmo ao tradicional verso que diz: Barra só dá barão).
As barcas, à vela eram embarcações grandes com 12 a 15 metros de cumprimento e 3 a 4 metros de largura utilizadas para as viagens de longa distância. A partir da metade do Sec. XVIII os barqueiros passaram a exibir na proa da barca uma grande e especial carranca de madeira por acreditarem que assim estariam protegidos de naufrágios e outros males provocados por seres lendários que viviam no rio. Na parte da frente possuía uma área coberta com palha de carnaúba, chamada de “tolda” e que servia de proteção contra chuvas e sol, para o barqueiro e seus familiares durante as longas viagens. Era uma espécie de camarote que servia inclusive para dormir.
Nas laterais das barcas à vela existiam passarelas de aproximadamente 40 cm de largura por onde os “remeiros” caminhavam empunhando os remos ou as varas utilizadas para movimentar as barcas na ausência do vento. Essas barcas chegavam a viajar grandes percursos comerciando entre as cidades existentes no trecho do rio compreendido entre Juazeiro (BA) e Pirapora (MG). Às vezes, saindo da calha principal do rio, navegavam pelos principais afluentes como Rio Corrente e Rio Grande levando todo o tipo de cargas para os pontos mais longínquos do vale. Esses comerciantes ambulantes do Rio São Francisco, viajavam fazendo todo tipo de negócio com os estabelecidos na margem do rio. Vendiam de tudo desde tecidos a medicamentos de um modo geral, passando por produtos alimentícios e de armarinho. Era uma miscelânea fluvial. Outros, no entanto, especializavam-se apenas com o transporte a frete – era comum cargas de cachaça ou rapadura serem despachadas de uma cidade para outra.Também existia os que vendiam no varejo diretamente ao consumidor, os mais variados produtos como vestidos de algodão, agulhas, fitas, xales de todas as cores, sapatos etc.
Quando o vento era favorável, principalmente quando subiam o rio com destino às cidades de Minas Gerais, as barcas, garbosamente abriam as suas velas latinas, de formato triangular, e deslizando sobre as águas proporcionava um esperado descanso aos tripulantes. Nas calmarias ou quando encalhavam em algum banco de areia no meio do rio, porém, essas enormes embarcações eram impulsionadas pelos “remeiros”. Mas, quem eram os “remeiros”?
(continua na próxima semana)

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